quinta-feira, 3 de janeiro de 2008

Crianças invisíveis

Como professora e educadora - de escolas públicas, particulares e também de escolas dominicais - que sempre fui, essas questões relacionadas a crianças e jovens nunca deixaram de sair do meu foco de atenção. Em 2007 assisti a um filme intitulado “Crianças invisíveis” (que recomendo a todos vocês que ainda não viram), e nesse mesmo ano um colega de trabalho convidou-me para conhecer e ajudar na assistência às famílias da chamada “Ocupação” no bairro Benfica em Juiz de Fora.
No dia 12 de outubro de 2007 estive lá pela primeira vez.
Não dá para relatar o sentimento de vergonha e tristeza que toma conta da gente quando nos deparamos com uma realidade tão dura como aquela e tão próxima de nós. Por outro lado, quase todos os dias, comodamente, recebo mensagens e imagens belíssimas da criação de Deus, via e-mail. Então, ao contemplar essas imagens, quase sempre me vem à mente um trecho de um livro que li e que transcrevo abaixo:
“Apesar do terrível vazio de nosso universo, apesar da dor que o domina, algo persiste, como o aroma de um antigo perfume, desde aquele momento de princípios, em Gênesis 1.”
“Eiseley está certo; no coração do universo há um sorriso, uma pulsação de prazer transmitida desde o instante da Criação. Todo novo pai que pela primeira vez carrega um nenezinho, seu nenezinho, trazendo-o bem junto à sua pele, sabe o que é isso. E foi esse o sentimento que Deus teve quando examinou o que havia feito e declarou que era bom. No início, bem no início, não houve qualquer sentimento de desapontamento. Somente alegria.” Philip Yancey – Decepcionado com Deus.
Sim, posso imaginar como no início, bem no início da criação, tudo era belo e bom. Hoje a dor predomina no nosso mundo, mas entendo que o aroma desse antigo perfume ainda persiste, também através de nós...
A “Ocupação” é uma área no bairro Benfica, Juiz de Fora, que fica entre a BR-040 e a via férrea. O terreno pertence a uma firma, antiga "Cimento Barroso". Fomos informados que a Ocupação começou há uns cinco anos com pessoas que vieram da roça a procura de melhores condições de trabalho na cidade, mas, sem estudo e nenhuma qualificação profissional, acabaram ficando à margem, literalmente. Já houve até quarenta famílias ali; atualmente, há cerca de vinte e quatro. De fato, naquele local não há a menor infra-estrutura para um ser humano viver com dignidade – eles não têm água potável, não têm eletricidade, muito menos rede de esgoto. Um caminhão-pipa da Prefeitura fornece um mínimo de água que eles precisam para sobreviver.
No dia 08/12 estivemos lá de novo e conseguimos tirar algumas fotografias que vão continuar esta história.


Logo na entrada, à direita, atrás da cerca de arame farpado está o "espaço comunitário" dos moradores da Ocupação.


Aqui eles se reunem para receber visitas, doações e resolver seus assuntos comunitários.


Em frente ao salão comunitário, numa área cercada, fica o depósito de materiais recicláveis. Essa atividade de catadores de lixo reciclável é a única fonte de renda dos moradores da Ocupação.


Há um responsável que pesa a "colheita" diária dos trabalhadores, registra e aguarda o comprador do material que vai buscar ali mesmo. Há também algumas doações da população em geral.


Quando chegamos vimos alguns meninos descalços ou de sandália havaiana, que brincavam em dupla com muita criatividade. Com uma tira ou cordão, um deles era amarrado pela cintura; o companheiro então, com uma varinha, fustigava o amarrado como se ele fosse um cavalo.


Assim, muito sujos de barro (pois havia chovido durante a noite) eles corriam e se divertiam.


Aqui vemos um dos barracos. É esse tipo de moradia que predomina na Ocupação. Algumas crianças tinham manchas brancas na pele; alguns adultos apresentavam falhas na dentição e os idosos, totalmente desdentados. Fomos informados que já houve surto de hepatite ali.


Raquel e Eny, senhoras da Igreja Luterana, com os meninos que logo seriam os nossos mensageiros para chamar outras crianças.


Dando uma volta na área nos deparamos com as ruínas de um barraco destruído pelo fogo. Felizmente não houve vítimas fatais.


Caminhando mais um pouco encontramos uma moradia diferente das demais. Tia Jucélia fez o melhor que pode com muitas folhagens e flores na frente da casa.


Dentro da moradia... tudo muito limpo, organizado e muito, muito enfeitado. Todo e qualquer material foi reciclado para ter uma utilidade, ainda que só decorativa!


O dia estava nublado e cinzento, o que deixava a "paisagem" mais carregada e triste. Um cheiro forte por ali vinha de um chiqueiro de porcos, bem próximo da área.


Nosso objetivo era comemorar o Natal com as crianças e assim reunimos todas no salão comunitário. Conversamos sobre o sentido do Natal, cantamos e festejamos.


Repartimos um pequeno lanche, que levamos, com crianças e mães.


Depois Raquel e Eny distribuiram os presentinhos: caminhão-caçamba para os meninos e uma bolsa para as meninas.


Os meninos logo acharam um montinho de terra onde fizeram a festa.


Felizmente essas famílias da Ocupação não estão assim tão invisíveis. Pelo menos para algumas pessoas sensíveis e atentas, como meu colega Prof. Júlio Freitas e sua família e também para alguns segmentos da sociedade. Fincaram sua bandeira ali, o Movimento Nacional de Luta pela Moradia, cujo representante, Paulo Sérgio, faz um trabalho voluntário muito expressivo na Ocupação.


Outra bandeira que vimos ali foi a do Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis.


Uma pequena Igreja Evangélica Pentecostal também lançou ali os seus alicerces e, na radicalidade de sua pregação, tem conseguido tirar alguns da sarjeta!


Há poucos dias atrás, Paulo Sérgio passou-me a boa-nova: conseguiram finalmente a formalização do Acordo entre Prefeitura, Caixa e EmCasa para começar a construção de casas num terreno ali perto, doado pelo Grupo Votorantim (antiga Cimento Barroso), para onde essas famílias serão transferidas em dezoito meses! A Prefeitura expõe uma placa anunciando a solução para os moradores da Ocupação.

Uma moradia decente - uma conquista importante para os moradores da Ocupação. Esperamos que seja a primeira de muitas outras conquistas dessa gente. Gente que precisa se libertar da pobreza extrema, dos vícios, da descrença, da agressividade...
e ganhar novas oportunidades, nova perspectiva de vida!

Ocupação em Benfica, Juiz de Fora, apenas uma amostra da miséria humana visível e escancarada em nosso país! O que podemos fazer como indivíduos ou grupos organizados para ajudar a mudar essa triste realidade?

Permitam-me citar de novo Philip Yancey:
"Este mundo pode estar cheio de poluição, guerra, crimes e cobiça, mas dentro de nós – de todos nós – perduram vestígios que nos fazem lembrar como o mundo podia ser, como nós podíamos ser. É possível sentir tais anseios no movimento pela preservação do meio-ambiente, cujos líderes anseiam por um mundo mantido em seu estado original; e no movimento pela paz, que sonha com um mundo sem guerras; e nos grupos de terapia, que buscam restabelecer laços de amor e amizade que se romperam. Toda a beleza e prazer que encontramos na terra representam “somente a fragrância de uma flor que não encontramos, o eco de uma música que não ouvimos, as notícias de um país que ainda não conhecemos.” Philip Yancey - Decepcionado com Deus.

Puxa! Sonho com esse mundo restaurado sem dor ou feiura. Como seria bom se fosse instalado já e por completo. O que podemos fazer para abreviar esse tempo de espera?
"O Rei lhes dirá: Em verdade vos afirmo que, sempre que o fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes." Mateus 25,40.

Gostaria de terminar com um texto que foi publicado no boletim de 25/11/2007 da Igreja Luterana em Juiz de Fora.

CRIANÇAS INVISÍVEIS
No dia 05 de agosto de 2007, o Jornal “O estado de São Paulo” trouxe uma matéria assinada por Luciana Constantino e Simone Iwasso sobre crianças consideradas invisíveis, devido aos seguintes fatores:

1) AIDS – quase 20 mil crianças brasileiras com menos de 12 anos nasceram ou foram infectadas com o HIV, vírus causador da AIDS. A sociedade, em geral, demonstra ter medo destas crianças e pouco ou quase nada se sabe sobre a situação delas e que enfrentam muita discriminação e rejeição.

2) FILHOS DE PRESIDIÁRIOS – há cerca de 80 mil crianças afastadas de seus pais, morando em instituições. A maioria destas crianças têm o pai ou a mãe na prisão. 78% das mulheres que estão presas no estado de São Paulo, têm pelo menos um filho.

3) FILHOS DE IMIGRANTES ILEGAIS – estudos apontam que há mais de 200 mil imigrantes ilegais em São Paulo. Não se sabe ao certo quantos destes são crianças que, embora estejam na idade escolar, não estão indo à escola. Muitas ficam trancadas em casa o dia todo, enquanto os pais cumprem longas horas de trabalho.
OUTRAS CRIANÇAS INVISÍVEIS
1) CRIANÇAS PRISIONEIRAS EM SUAS PRÓPRIAS CASAS - A falta de lugares seguros para que as crianças possam brincar e o fato dos pais trabalharem fora, deixa um número impossível de calcular, dentro de suas casas, presas na TV, nos games e na Internet.

2) CRIANÇAS ABUSADAS – O mau trato para com as crianças e que incluem abuso verbal, físico e sexual, nem sempre é registrado. Crianças são coagidas ao silêncio e têm medo de denunciar. Adultos que desconfiam e até sabem destes problemas fazem de conta que não percebem nada e o mal se alastra.

3) CRIANÇAS DEFICIENTES – Muitos pais têm preconceito em expor os seus filhos deficientes e assim dificultam o pleno desenvolvimento deles.
A FALTA DE VISÃO DAS CRIANÇAS
Quem vai olhar para estas crianças? Quem vai se preocupar com a realidade que elas enfrentam? Quem vai sair para vê-las, encontrá-las, ajudá-las e amá-las? Será que enxergamos as crianças que vivem no prédio, na rua, na vila, no bairro? Alguma vez, pelo menos, fizemos um gesto que mostrasse nossa apreciação e desejo de ser amigos? Vamos olhar para as crianças invisíveis ao redor de nossas casas e de nossas igrejas. Em vez de dar presentes para nossos próprios filhos e às crianças de nossas igrejas, vamos sair ao encontro das crianças invisíveis.
(De: O Evangelista de crianças – APEC)

7 comentários:

Anônimo disse...

Parabéns! Muito comovente e nos faz lembrar de Jesus que olhou para todos os invisíveis daquela sociedade da sua época e ainda olha para os invisíveis da nossa sociedade!

Anônimo disse...

Parabéns pela matéria.Que saibamos amar os pequeninos.Que Deus te abençõe.

Anônimo disse...

OI.

Anônimo disse...
Este comentário foi removido por um administrador do blog.
Anônimo disse...

Querida Mãe,

Excelente reportagem!
Fiquei emocionada enquanto a lia, mas também feliz, pois é neste Brasil que eu acredito: Brasil da solidariedade, do voluntarismo, da integração social promovida através de iniciativas locais.
E cabe aos cristãos buscar a restauração da criação, ou seja, "arregaçar as mangas" e ir ao encontro dos invisíveis.
Que Deus te abençoe nesta nobre inicicativa.

Katia

Julio Freitas disse...

Querida Neiva, fiquei muito alegre com o seu envolvimento, no natal, levamos varios brinquedos doados pelos professores da Escola Estadual Francisco Bernardino. Foi uma grande festa, crianças que nunca ganharam presente novo tiveram este desejo realizado, mas a pobreza continua, estou muito preocupado com a situação pois a ocupaçaõ está no limite.
Neiva tenho algumas fotos no orkut da festa, vale a pena dar uma olhada, ficou muito legal.
Juliocsmf@yahoo.com.br ou crianças invisiveis.Sua homenagem.
Educação.
Venho trabalhando com comunidades populares há mais ou menos quatro anos e tenho algumas opiniões apoiadas em observações empíricas.
As doações que ajudam a suportar a condição subumana imposta pelo sistema excludente que vivemos também possuem características imobilizadoras nas sociedades atendidas por programas assistenciais governamentais como a bolsa família, vale gás, ou mesmo doações de alimentos ou roupas da sociedade civil.
Não estou com isso tentando produzir um discurso contra as doações de qualquer fonte (sociedade ou estado), o que pretendo com este texto é chamar a atenção para o “assistencialismo” do Estado desligado de políticas publicas que levem mais do que alimentos, mas sim oportunidades de qualificação profissional.
As famílias pobres, não conseguem entrar na rede formal de trabalho, esse bloqueio, motivado pela baixa escolaridade e nenhuma experiência profissional potencializa uma situação de inércia no grupo familiar, os filhos não acreditam que podem ter um futuro melhor do que os pais.
As doações percorrem um caminho, o morador popular recolhe a doação, dinheiro, roupas, alimentos, consomem os produtos e esperam novas doações, não assumem compromisso de melhorarem suas vidas, dando para comer já esta muito boa.
A acomodação com os donativos é visível, mal agradecem, parece que a sociedade tem o dever de prover os espaços populares de alimentos, é obrigação, é melhor pedir do que roubar.
As desculpas são inúmeras, não consigo emprego, não tenho documento, prefiro trabalhar catando lixo reciclável. Estudar para que, “tem gente” que tem estudo é não tem emprego.
Acredito que a saída para essa parcela numerosa da sociedade brasileira (sobrantes) seria um investimento maciço em educação, ensino regular e profissionalizante, gerar empregos a partir dos profissionais recém formados.
Trabalhar estas sociedades gerando renda, cursos de padeiros, confeiteiros, lanterneiros, mecânicos ou vendedores, profissões que tem mercado.
Imagina um chefe de família que ganha mensalmente duzentos reais com reciclagem do lixo, receber no final do primeiro mês, setecentos reais como padeiro, toda a família vai ser beneficiada e mobilizada para melhorar a situação.
O Estado vai parar de “investir em programas sociais sem resposta” e produzir receita para o próprio Estado em forma de impostos, mas por que não é assim, eu não sou o primeiro ou o ultimo a verificar essa situação.
O “Estado precisa desse exercito de miseráveis na época das eleições, continuaremos a pagar a “bolsa família” desde que seus votos vão para o nosso candidato”.
Esse discurso secular não deixa o Brasil desenvolver, estou cansado de ver brasileiros vivendo como miseráveis, pessoas que poderiam produzir riqueza para a nação serem doutrinadas para a acomodação e o assistencialismo, mas sem a nossa doação a situação ainda poderia ser pior, pois o Estado como escrevi, só percebe essas sociedades nas eleições.
Continuarei a fazer campanhas, muitas crianças dependem dos donativos para viverem com um pouco de dignidade, mas estou muito triste por saber que as doações não combatem o mal social, ela ameniza o sofrimento é ajuda o político a ser eleito.
Educação, a solução deste enorme problema social brasileiro.
Julio Cezar Souza Monteiro de Freitas, professor de Geografia.

Anônimo disse...

O Movimento Nacional de Luta pela moradia agradeçe o reconhecimento na luta pela iclusão e resgate de cidadânia de familias e crianças,que mesmo em meio de tantas dificuldades inspiram a vontade de viver.