domingo, 24 de abril de 2016

Sonhos que alentam

Um raio de sol se infiltrou pela fresta da veneziana e veio bater direto na cara de Pedro. Levantou-se de um salto, assustado, achando que tinha perdido a hora. Não era a primeira vez que isso acontecia. Muitos anos já tinham passado, mas era recorrente acontecer isso, ele acordava atordoado, achando que tinha perdido o transporte escolar da Prefeitura que o levaria para a escola.
Houve um tempo na minha juventude quando eu precisei parar de estudar para trabalhar na roça. Então sonhava com a escola e acordava agitado com a sensação de ter perdido a Kombi. "Mas que raio de cara mais besta que eu sou! Tô careca de saber que não estudo mais, que não tenho hora certa pra chegar a lugar nenhum e fico sempre nesse sufoco todo quando acordo. Eeeta!"
Certa vez, depois do almoço, Pedro sentou-se debaixo de uma mangueira buscando alívio para o calor. Jogou um saco meio cheio de adubo contra o tronco e recostou-se pendendo a cabeça para trás. Assim ele parecia ficar mais leve e livre. Os pensamentos mais secretos vinham à tona e ele podia rir, chorar e sussurrar coisas ininteligíveis. Os seres vivos à sua volta nem se assustavam, tudo normal.
Como a vida prega peças. Eu gostava da escola. Estava indo tão bem. Ainda me lembro do livro que ganhei de presente da professora, porque consegui ler e escrever em pouco tempo, antes de completar sete anos. Acho que li aquele livro mais de dez vezes nas minhas primeiras férias escolares. O pai ficava feliz e garantia que se dependesse dele, eu seria o primeiro médico veterinário na família! Mas aí veio aquela maldita seca que destruiu tudo. Droga. Por que, pai, você não aguentou firme para cumprir sua promessa? Mas saiba que eu não desisto fácil!
A sonolência do momento o levava de rédeas soltas para passeios longínquos... Mas uma voz familiar ia ficando cada vez mais perto até trazê-lo de volta à realidade. "Pedro! Anda, meu filho, o tempo voa e ocê ainda tá aí parado. Corre, pega o machado e pica uns pedaços de lenha pra mim". - Logo mais, a noitinha, em volta da mesa, Pedro, sua mãe e mais cinco irmãos menores tomavam uma canja, quando a mãe lembrou-lhes da visita que fariam no domingo ao irmão dela, o Joca, na vila. "Não fosse por ele, era bem capaz da gente não estar tudo reunido aqui". - Pedro pensou no tio.
Tio Joca foi especialmente bom e carinhoso naquele dia fatídico... Já era o segundo ano de muito prejuízo por causa da seca. Não podia ter acontecido em pior ocasião. O pai fizera empréstimo no banco para comprar algumas ordenhadeiras mecânicas e não tinha como pagar. A situação era péssima para nós, mas não éramos os únicos endividados. Os vizinhos também sofriam perdas e estavam apavorados. Então como que na sequência de um rito macabro, o vizinho que tinha um alambique suicidou-se, depois foi outro que morava perto do rio. Eu me julgava preparado para o pior, mas nunca imaginei que a minha família seria a próxima vítima da fatalidade. Um dia quando cheguei da escola, vi o tio Joca no terreiro de casa. Era estranho, bem no meio da semana. Ele tinha meu irmãozinho caçula no colo e estava rindo para a criança, mas quando me viu, seu sorriso congelou e se partiu, seus olhos marejados de lágrimas deixaram escapar uma dor intensa. - Seu pai... Ele não aguentou a pressão. Ele também se foi. – E sustentou-me num abraço bem apertado.
Pedro tinha apenas 14 anos quando assumiu o posto de homem da casa, arrimo da família. Assim que terminou a oitava série do Ensino Fundamental, parou de estudar. Teria que se mudar para a cidade se quisesse continuar. Não podia deixar a mãe sozinha com os irmãos. Teria que, junto com ela, lutar muito pela sobrevivência da família. Pedro tinha a noção exata da realidade e decidiu ficar. De vez em quando Tio Joca lhe trazia alguns livros, revistas e até jornais que eram o seu deleite nas poucas horas vagas.
Quando mergulhava nas minhas leituras, eu podia voar nos meus sonhos, mas os gritos de socorro não me deixavam ir muito longe. - Pedro, acode aqui. Depressa! - Um bezerro tinha sido mordido por uma cobra. Fizemos o que foi possível com remédios caseiros, mas eu bem sabia que somente a intervenção de um veterinário e medicação apropriada salvaria o pobre animal. Viu-o agonizar por alguns dias. Então decidi mais uma vez no meu coração que jamais abriria mão de concretizar meu sonho, de me tornar um veterinário, de trazer recursos modernos para a lida na roça.
Já era tradição e no mês de junho todo mundo esperava pela festa junina organizada pelo Sebastião, era o “Arraiá do Tião do Calambau”. - Este ano, de novo, eu não vou pro Arraiá do Tião, por causa do luto que ainda guardo. Mas ocês pode ir. A única coisa é que Pedro vai ter que tomar conta direitinho dos irmãos tudo.
Caramba. Ir a uma festa e ter que ficar cuidando de menino... Mas eu precisava ir pra tirar uma dúvida. Na última vez que tinha ido à igreja, eu tive a impressão que Rosinha me olhava de um jeito diferente... Não, essa festa eu não podia perder.
Durante o evento Pedro estava com os olhos fixos em Rosinha quando reparou que ela olhou para ele e logo desviou o olhar, como que tentando dissimular um ato de ousadia. Na dança da quadrilha, no momento do baile, quando ela rodou e foi parar nos seus braços, ele sentiu um estremecimento, uma emoção nova, como nunca havia sentido antes. Mas ficou só nisso mesmo naquele dia. Pedro não podia demorar na festa, pois tinha que voltar com sua tropa de irmãos e a pé. No dia seguinte Pedro achou um tempinho para ficar sozinho com seus pensamentos embaixo da mangueira.
Até que a Rosinha era jeitosa, eu podia me engraçar por ela fácil, fácil. A gente podia começar namorar e se tudo desse certo... Mas não! Não era esse o meu primeiro projeto de vida. Não queria me desviar dos meus planos. "Eu vou voltar a estudar e vou me tornar um veterinário, custe o que custar. Mas também não posso fazer as coisas de qualquer jeito, deixando minha família sofrer mais ainda. Sabe de uma coisa? Vou começar preparar o Zé Carlos pra me substituir e assim que ele se livrar do exército, eu vou!"
Assim devagarzinho, Pedro começou comentar como seria sua vida quando fosse para a cidade estudar. Os irmãos estranharam. A mãe aparecia com os olhos vermelhos e com olheiras. - Eles vão rir do seu jeito de falar, seu bobo. – dizia Zé Carlos. - Num tô nem aí. – e dava de ombros. O tempo passou e um dia, Pedro chamou sua mãe e detalhou seus planos. Ele deveria se mudar para a cidade no início do ano seguinte. Tinha umas economias para o começo, mas iria procurar emprego imediatamente. Depois era só conciliar trabalho e estudo. Jamais deixaria de visitá-los e trazer uma ajuda em dinheiro ou roupas, enfim, o que mais estivessem precisando. - Mãe, sei dos riscos, assumo minha escolha. - Filho, vai com a bênção de Deus. Vou sentir muito a sua falta, mas eu compreendo que ocê precisa ir. Nós vamo aguentá firme aqui.
Muitas vezes tive medo e cheguei a duvidar; eu me perguntava se estava no caminho certo. Sentia falta do carinho e dos cuidados de minha mãe, da alegria dos meus irmãos, do aconchego do lar. Buscava então na figura da minha mãe forças para persistir. Sua determinação e fé em Deus eram minhas também.
Tudo que Pedro conseguiu foi trabalhar limpando jardins e quintais. O ganho era insignificante, não dava para pagar suas despesas. O dinheiro já estava quase acabando quando foi convidado para morar de caseiro num quartinho, nos fundos de uma mansão. Foi um alívio, pois o que mais temia era voltar para a roça com uma mão atrás e outra na frente. Através do EJA conseguiu terminar o segundo grau em dois anos. Agora vinha a parte mais difícil, a barreira do vestibular para ingressar no curso de veterinária. Como pagar o cursinho? Conseguiu um emprego num mercado das 6:00 h às 14:00 h, além da jardinagem. Já dava para pagar o cursinho, mas não sobrava muito tempo para estudar. Depois de fracassar em quatro tentativas de vestibular para veterinária, Pedro resolveu fazer o curso de biologia para não perder mais tempo. Estava indo muito bem e os professores sabendo do seu sonho, resolveram ajudar. Pedro ganhou uma bolsa de estudos em uma faculdade particular! Era sorriso de orelha a orelha, alegria pura. Finalmente ia começar o curso de veterinária.
Ainda me lembro como se fosse hoje. Depois da euforia da grande notícia, surgiram as preocupações. Outra cidade... mais longe ainda, mais despesas... Sabia que era só o começo de mais etapa difícil e desafiadora, mas estava determinado a não desistir... Passei muitos momentos de crise, falta de dinheiro, de tempo, saudades dos familiares na roça; no entanto uma força maior me erguia em meio às minhas fragilidades. Era um colega solidário na hora exata, uma palavra incentivadora ou aquele resultado vitorioso em um exame difícil. Também não perdia minha referência principal, minha mãe. Sua aparente fragilidade apenas dissimulava uma mulher decidida, batalhadora, incapaz de se abater diante das injustiças da pobreza. E nela me inspirava para dar tudo de mim, até a exaustão total.
No final do curso, no feriadão de finados, ele foi para casa. De longe avistou a mãe varrendo o pátio e os irmãos batendo uma bola ali perto. Pareceu-lhe que a mãe estava velha, ou melhor, envelhecida – a silhueta encurvada, frágil, vulnerável... Já seus irmãos esbanjavam vitalidade e alegria. Sentia-se responsável por eles. “Tão jovens, com uma vida toda pela frente. Quero ajudá-los agora a concretizarem seus sonhos também. Minha mãezinha, você precisa desacelerar e descansar sem preocupação”. - É o Pedro que tá chegando, gente. – e todos corriam emocionados. - Que saudade! – então ele abria os braços para envolver todos ao mesmo tempo. Enquanto os irmãos se alegravam com roupas novas e aquelas coisas muito coloridas e barulhentas, “made in China”, compradas no camelódromo, Pedro e sua mãe iam para debaixo da mangueira falar de coisas mais sérias. - Mãe, quero que a senhora participe da minha formatura. Sabe, já tenho onde trabalhar depois de formado e vai ser perto daqui, não é bom demais? Era bom demais mesmo. Dona Francisca nem conseguiu responder, apenas balbuciou um “Brigado, meu Deus"! e chorou de emoção. - Mãe, cadê a Rosinha? Ela ainda mora na vila? Quem sabe...