sexta-feira, 12 de julho de 2013

As vozes das ruas e de todos os caminhos

Dos revoltosos da Coluna Prestes aos protestos e passeatas de hoje... Já faz tempo, mas ainda bem me lembro de minha mãe contando as suas histórias. Eu era criança e escutava os relatos como quem escuta uma história da carochinha.
Depois que todos tinham almoçado e apenas aguardavam papai se por de pé na cabeceira da longa mesa, para então se dispersarem, ele disse peremptoriamente: "um momento, aguardem nos seus lugares". Mamãe, meus irmãos e eu, todos ao mesmo tempo, nos voltamos para ele curiosos e assustados. Bastava um olhar, um gesto, ou uma palavra do Sr. Virgínio Ferreira de Almeida para que todos se colocassem alertas. Papai explicou que em 24 horas todos deviam estar preparados para deixar a fazenda. Iríamos nos embrenhar no mato, achar um grotão bem fundo onde nunca ninguém se atreveu entrar e lá, exatamente nesse lugar, íamos levantar acampamento por tempo indeterminado. Assim era preciso para escapar dos revoltosos da Coluna Prestes que já se movimentavam adentrando o estado do Mato Grosso. Papai voltou-se para mamãe e disse: "Dona Sinhazinha, a senhora esteja preparada junto com nossas filhas, Guilhermina, Leonor, Perolina e Cecília"! "André, José, Nestor, vocês três me acompanhem"! Papai caminhou altivo e determinado para a varanda da frente da casa grande onde reuniu seus peões e agregados. Ele não tinha uma agenda na mão, mas na sua mente já havia um plano muito bem traçado. Distribuiu tarefas e supervisionou tudo pessoalmente. Na fazenda deixaria alguns animais que pudessem servir de alimento para os revoltosos e até alguns cavalos de boa montaria, caso quisessem levar. É claro, um peão esperto que se fazia de louco quando necessário, ficaria por lá, estrategicamente.
Minha mãe, Perolina, repetia essa história acrescentando detalhes diferentes a cada vez. Já adolescente, no ginásio, eu gostava de estudar História. O então Colégio Estadual de Minas Gerais, em Belo Horizonte, já naqueles anos 60, tinha uma boa biblioteca que era o meu deleite. Não me lembro bem onde foi que li a respeito da Coluna Prestes. Só sei que comecei contestar minha mãe. "Mamãe, acho que o vovô exagerou. Não precisava fugir e se esconder". Então tentava explicar a História. A Coluna Prestes foi um movimento político, entre os anos de 1925 e 1927, liderado por militares, contrário ao governo da República Velha e às elites agrárias. Eu queria convencer minha mãe que se tratava de um movimento legítimo, pois a principal causa foi a insatisfação com a forma que o Brasil era governado na década de 1920: falta de democracia, fraudes eleitorais, concentração de poder político nas mãos da elite agrária, exploração das camadas mais pobres pelos coronéis (líderes políticos locais). "Espera aí, minha filha, eu sei que a Coluna Prestes teve esse nome por causa de um de seus líderes, o capitão Luís Carlos Prestes, que até podia ser bem intencionado no começo, mas os livros não contam tudo". Ao que eu respondia: "Pode ser...Eu acho mesmo que naquela época os meios de comunicação eram precários demais. Foi preciso fazer verdadeiras incursões pelo interior do Brasil, pois percorreram vinte e cinco mil quilômetros. Por onde passavam, eles conversavam com as pessoas e faziam propaganda contra o governo federal, mostrando as injustiças sociais da época e defendendo reformas políticas e sociais. Eles queriam implantar o voto secreto e o ensino fundamental obrigatório no Brasil. Então, isso não era muito bom para o povo"? Minha mãe me ouvia com paciência e atenção, mas rebatia.
Na prática a teoria é outra coisa! Hum! Só sei que eu e minhas irmãs, adolescentes e mocinhas na época, ficamos com muito medo. Ouvíamos histórias de estupros e atrocidades cometidos pelos revoltosos. Sim, esse era o nome que dávamos à Coluna Prestes. Uma família, agregada na Raizama, a nossa fazenda, ficou com tanto medo que ao fugir, matou um cachorro e um papagaio falador, ambos de estimação - só para eliminar pistas! Minhas irmãs e eu ficamos muito alvoroçadas com a fuga. Cecília, a caçulinha, se queixava que ninguém dava atenção ao que ela falava. Leonor era baixinha, mas somente no físico, pois sempre teve voz de comando. Na verdade quem sempre tinha a palavra final era Guilhermina, a mandona, que detinha o poder de irmã mais velha. Eu, coitada de mim, ainda me recuperando da minha perna quebrada, só exigi uma coisa, que me carregassem onde não fosse possível a montaria... Quando chegamos ao grotão, papai armou uma barricada num lugar estratégico onde sempre tinha homens armados de prontidão. Não muito tempo depois o peão maluco apareceu anunciando: "revortoso se foi em boa hora"! Graças a Deus pudemos voltar sãos e salvos antes do período das chuvas. Papai mandou rezar uma missa de agradecimento. Naquela época ele e todos nós ainda não tínhamos nos convertido ao protestantismo Presbiteriano.
Os relatos de minha mãe só me atiçavam a curiosidade e mais eu procurava saber dos registros da História. Assim fiquei sabendo que apesar dos esforços, a Coluna Prestes não conseguiu a adesão da população. A longa marcha foi concluída em fevereiro de 1927, sem cumprir seu objetivo, disseminar a revolução no Brasil. O movimento liderado por Carlos Prestes contribuiu para expor os problemas do poder concentrador oligárquico da República Velha, culminando na Revolução de 1930. Projeta a figura de Luís Carlos Prestes, que posteriormente entra no Partido Comunista Brasileiro (PCB). Prestes foi chamado por esta marcha de cavaleiro da esperança na luta contra os poderes dominadores dos setores elitistas. As irmãs Ferreira de Almeida: Guilhermina, Leonor, Perolina e Cecília, e também os irmãos: José, André e Nestor, já não estão entre nós há bastante tempo, mas suas histórias e legados continuam conosco, seus descendentes. Somente em 1998 os relatos de minha mãe são confirmados pela História oficial, ou melhor, extraoficial. Não pude dar-lhe a mão à palmatória. Transcrevo ipsis litteris da Wikipédia, tendo como referência NARLOCH, Leandro. Guia Politicamente incorreto da História do Brasil. Editora Leya, 2009.
Em 1998, o Centro de Pesquisa e Documentação (CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas, abriu um conjunto de 28 mil cartas, manuscritos e fotos de Juarez Távora. Um dos sobreviventes da Revolta do Forte de Copacabana, de 1922, a primeira revolta tenentista, Távora formava com Prestes e Miguel Costa a cúpula da Coluna. Entre a papelada de seu arquivo, havia cartas escritas e recebidas por esses líderes. As mensagens revelam que o grupo não era recebido com festas por onde passava, pelo contrário. Saques, estupros, assassinatos e outras atrocidades deixavam a população aterrorizada. Ao saber da chegada dos arruaceiros, a população costumava fugir para se livrar das atrocidades cometidas pelos invasores.
Mais de oitenta anos se passaram da Coluna Prestes ou dos Revoltosos até a presente data, 2013, e o que vemos acontecer nas ruas e estradas de norte a sul do Brasil??? No mês de junho de 2013 os olhos do mundo se voltam para o Brasil por conta da Copa das Confederações, uma mini copa preparatória para a grande Copa Mundial do Futebol em 2014, também no Brasil. É a oportunidade perfeita para sindicatos, entidades diversas e povo deflagrar o início de manifestações e protestos. É o momento oportuno de manifestar descontentamento, protestar contra as injustiças e mazelas da política atual, mostrar ao mundo o que se passa nesse país além do futebol propriamente, do samba e mulatas. Em questão de horas através da mídia eletrônica, principalmente das redes sociais, é possível convocar e realizar grandes concentrações em todas as capitais. O povo sai às ruas e os protestos aumentam assustadoramente por cidades interioranas também. A gota d'água que entornou a caldeira em ebulição, foi o aumento da tarifa do transporte público em vinte centavos. Aquele velho discurso de que não há verbas para questões básicas como transporte, saúde, educação e segurança soou mais mentiroso do que nunca, especialmente quando se gasta bilhões com estádios suntuosos, aliás, arenas - como são chamados modernamente. A presidenta Dilma cogita um plesbicito, os deputados e senadores começam votar assuntos de interesse da população... De fato a mobilização popular volta a pressionar. Alcançará o patamar das "Diretas Já", de 1984 ou dos "Caras Pintadas" pelo impeachment de Collor em 1992? Mas, como que num filme que já vi antes, ou como uma história que já ouvi há muito tempo, em meio às manifestações pacíficas e bem intencionadas, arruaceiros e vândalos deixam as suas marcas de ódio e destruição. Atos violentos por parte da polícia também são registrados aqui e acolá. Assim a história se repete. Parece que sempre haverá alguns seres irracionais que vão se aproveitar de uma situação para soltar seus instintos bestiais, pois só assim pensam alcançar autoafirmação. Ainda não sabemos se "a revolução dos vinte centavos" alcançará seus objetivos que acabaram se tornando múltiplos, extrapolando a pauta inicial. Nós vamos acompanhando tudo e... participando. Por que não? A mídia eletrônica aos poucos torna-se uma ferramenta familiar e útil para nós também, do alto dos nossos sessenta e quatro anos!

segunda-feira, 10 de junho de 2013

Os Bundas de Couro

Ele era o pai da minha avó materna, portanto meu bisavô. Era um cearense baixinho, de cabeça achatada e pescoço curto. Antônio Pinto Pereira desde muito jovem aprendera o ofício do pai que era ourives. Entrou para o exército e passou a ser chamado de cadete Pinto. Corria o ano de 1864. Na longínqua terra de Iracema – a virgem dos lábios de mel, as notícias chegavam com atraso. Entretanto todos comentavam que a honra do Imperador e de todos os brasileiros não podia ser enxovalhada pelo ambicioso Solano Lopes, governante do Paraguai. Quase 150 anos depois, a História quer nos situar como tudo aconteceu. Através da ótica de qual historiador chegaríamos mais perto da verdade? Para mim fica evidente que as jovens nações sul-americanas da época logo aprenderam o jogo do poder e da conquista a despeito de muitas vidas e famílias despedaçadas. Francisco Solano Lopes almejava aumentar o território paraguaio e conseguir uma saída até o Oceano Atlântico através dos rios da Bacia do Prata. Assim começou com seus movimentos bélicos. Brasil, Argentina e Uruguai se uniram através de um acordo conhecido como a Tríplice Aliança, com o objetivo de deterem o Paraguai. Antes da guerra, o Paraguai era uma potência econômica na América do Sul. Além disso, era um país independente das nações europeias. Para a Inglaterra, este país era um exemplo que não deveria ser seguido pelos demais países latino-americanos, que eram totalmente dependentes do império inglês. Foi por isso que os ingleses ficaram ao lado dos países da Tríplice Aliança, emprestando dinheiro e oferecendo apoio militar. Foi interessante para a Inglaterra enfraquecer e eliminar um exemplo de sucesso e independência na América Latina. A Guerra do Paraguai durou seis anos; contudo já no terceiro ano, o Brasil via-se em grandes dificuldades com a organização de seu exército. Além do inimigo, os soldados brasileiros tinham que lutar contra a falta de alimentos, de comunicação e ainda contra as epidemias que se alastravam com muita facilidade matando tanto quanto as armas. Meu bisavô foi tomado de grande ardor patriótico. Alistou-se para lutar na guerra e assim embarcou num navio. Depois de alguns dias aportou no Rio de Janeiro. A partir desse ponto a viagem deveria prosseguir por terra. A tropa precisava descobrir estradas e picadas, arranjar comida, desbravar regiões inóspitas. Alguém saberia informar onde estavam o imperador e seu séquito de condes, viscondes, marqueses, dinamarqueses e barões? Bem, diz a História que a última batalha foi liderada pelo Conde D’Eu, genro de D. Pedro II. Quando os soldados finalmente chegaram a Corumbá estavam tão maltrapilhos, com uniformes remendados com pedaços de couro, que mereceram o apelido de “bundas de couro”. Ali mesmo às margens do rio Paraguai, na tríplice fronteira - Brasil, Paraguai e Bolívia, ficaram sabendo do fim da guerra com a morte de Solano Lopes em Cerro Cora. Cadete Pinto sentou num tronco de árvore às margens do grande rio e suspirou. Experimentava sentimentos ambivalentes, tanto sacrifício para nada; mas graças a Deus podia descansar, podia pensar em viver uma vida normal. Tão jovem ainda, tão cheio de energia e esperanças. Foi quando ficou sabendo que o exército brasileiro lhe dava duas opções: continuar servindo ali mesmo, pois não havia recursos para mandá-lo de volta à sua terra natal ou pedir baixa. Resolveu deixar o exército e procurar um lugar onde pudesse exercer o ofício de ourives até conseguir dinheiro suficiente para voltar para o Ceará. De Corumbá viajou até a capital, Cuiabá. O auge do ciclo do ouro na província de Mato Grosso já tinha passado, mas achou boa oportunidade de trabalho como ourives na cidade de Livramento. Ali encontrou uma moça por quem se apaixonou. Leonora era miudinha e tímida, mas o cadete viu nela atrativos incontestáveis e logo se prendeu naquelas melenas negras e pesadas. Depois do casamento foram morar em Rosário-Oeste, a uns 100 km ao norte de Cuiabá. Cadete Pinto enviuvou-se precocemente e sozinho acabou de criar os filhos. Nunca mais voltou ao Ceará. Nunca mais viu seus parentes da terra natal. Minha avó materna era filha do cadete Pinto e Leonora. Ela herdou o temperamento tranquilo e os traços indígenas da mãe. Alguma semelhança com a neta que agora já é avó também? "Precisamos aprender a meditar sobre a história de nossas vidas!"
Litoral cearense - Praia do Cumbuco