quarta-feira, 23 de abril de 2014

Do Báltico à Terra das Palmeiras

Escrevo agora em homenagem a uma amiga querida que diz ter o coração dividido, metade do Brasil, a terra das palmeiras onde canta o sabiá e outra metade da longínqua Letônia, banhada pelo azul profundo do mar Báltico.
Inga deixou cair no colo a revista na sua língua materna e cerrou os olhos. Agora era assim, não conseguia fazer nada por mais de meia hora. Ainda que sua mente determinasse a continuidade da leitura, seus olhos cansados exigiam uma longa pausa. Quando abriu os olhos de novo, olhou na direção da sua montanha, ao oeste. Viu que ela já estava ficando levemente cor-de-rosa ou alaranjada e a luz do dia parecia difusa. Assustou-se com o adiantado da hora, mas ainda não estava escuro. Levantou-se e fechou a larga porta de vidro da sala. A cortina aberta  permitia que ela ficasse ali por mais alguns minutos olhando os últimos barcos pesqueiros que subiam o rio velozmente com seus motores potentes. O imenso rio, calmo e silencioso, estava tão próximo que às vezes ela tinha a sensação de estar flutuando sobre ele. Um dos barcos tinha umas luzes coloridas piscando. Lembrou-se então de que faltavam poucos dias para o Natal. Inga não queria lembrar-se dessa data que outrora trazia uma alegre agitação à sua vida no lar. O marido, trancado na oficina, preparava brinquedos artesanais. As crianças de férias e animadíssimas, esperavam ansiosas pelo dia de Natal...
- Não, é melhor esquecer agora. São lembranças nostálgicas.
Ligou a televisão e distraiu-se com um programa qualquer, mas só um pouquinho, para ficar com sono logo. Afinal precisava dormir cedo porque no dia seguinte o filho caçula que morava mais perto, viria buscá-la para um passeio até a barra.
O dia amanheceu lindo, não poderia estar melhor para realizar seus planos e ela sorriu no seu íntimo.
- D. Inga, já preparei sua bolsa, tem água e um pacote de biscoitos integrais. A senhora precisa de mais alguma coisa? – perguntou Leda, sua fiel serviçal e amiga.
- O pão está pronto? Fez do jeito como te ensinei?
- Sim, de centeio, recheado com toucinho defumado. Já está esfriando.
- Obrigada. Daqui a pouco Karlis chega, com certeza ele vai gostar de comer piragi, o pão típico da minha primeira pátria. Aliás, Leda, antes de ir, poderia colocar uma cadeira no gramado, na sombra, e ajudar-me ir até lá?
 A simples expectativa da presença do filho já a deixava mais animada. Sentou-se lá fora e ficou observando a movimentação no píer sobre o rio. Crianças jogavam pedacinhos de pão na água e isso atraia os peixes que pulavam borbulhando o rio brilhante. O céu continuava límpido, quase sem nuvens e ela podia avistar a montanha de três picos com uma nitidez incrível. As outras montanhas que formavam a cordilheira estavam bem mais longe, mas a sua montanha, como soberba guardiã do rio, estava ali, bem próxima, vigilante.
Durante o passeio Inga tirou as sandálias e andou descalça na prainha, uma pequena faixa de areia entre a foz do rio e o mar. Com o braço direito se apoiava no filho, mas nem por isso dispensava a bengala que segurava firme com a mão esquerda. Nunca se cansava da beleza daquele lugar. De um lado o grande rio, tão belo e poético, tão carregado de histórias até chegar ali, no entanto se entregava mansamente ao mar e assim, simples assim, desaparecia... Do outro lado ele - o imprevisível, o indomável mar - arrebentava suas ondas contra as rochas. De onde estavam podiam admirar a secular capela “plantada” no alto de um rochedo, cujo pátio ainda abrigava um cemitério. Uma música ao longe desviou a atenção de mãe e filho, era um pagode que vinha do outro lado do rio. Inga podia imaginar uma colônia de pescadores se alegrando com música, peixe frito e caipirinha.
- Mãe, como o tempo passa rápido. No próximo ano Martha começa a faculdade! A senhora está sabendo que ela passou no vestibular, não está?
- Não! É sempre assim, a avó é a última a ficar sabendo das novidades.
- Sem queixas, mami, a vida moderna é assim mesmo, um agito só e cheia de lacunas. Não damos conta de tudo.
                          A proximidade do Natal
 A proximidade do Natal começou aborrecer a anciã que não queria mais ligar a televisão ou passear na praça, “excessivamente iluminada”, dizia ela.
                - D. Inga, a senhora não quer mesmo armar a árvore de Natal?
                - Não, Leda, isso só me deixaria mais triste. Não tem graça enfeitar uma casa tão vazia. Agora pode ir. Eu vou pegar meu artesanato, quero terminar esse tapete logo.
Nem sempre Inga conseguia distrair-se com seu artesanato. Já não era tão ágil como antigamente, fosse cerâmica, tapeçaria ou pintura. Com frequência começava um trabalho para logo abandoná-lo e em seguida começar outro que teria o mesmo fim. Olhava para fora, para sua montanha. Aquela silhueta imponente era a garantia de que alguma coisa ainda permanecia como sempre e para sempre e cantarolou sua daina favorita, uma canção folclórica de sua antiga pátria.
- D. Inga, a senhora está lembrando do aniversário de D. Rute, amanhã? “Hum, agora é assim, pra tudo tenho que me preparar com no mínimo dois dias de antecipação”. O pensamento era inevitável.
- Ah, sim, mas estou sem ânimo para ir.
- Oh! D. Inga, vá assim mesmo. Vai ver como fica animada durante a festa.
- É... Talvez. Estou mesmo precisando espantar essa nuvem negra de saudades e solidão. Pode contratar o táxi.

Numa dessas tardes mornas de verão, Inga viu uma massa de nuvem negra envolver a montanha e avançar de um jeito irreversível e assustador na direção do rio. “Será verdade ou eu estou sonhando de novo”? Um pouco antes, em um dos seus cochilos, viu-se lá de novo, no Velho Mundo. Olhava pela janela e via a imensidão branca, gélida. Sua mãe não permitia que saíssem a não ser muito bem agasalhados, completamente rechonchudos de tanta roupa. No começo era uma festa para a criançada. Faziam guerra com bolas de neve e outras brincadeiras, mas o longo inverno acabava deixando quase todos deprimidos. Viu de novo a nevasca impiedosa cair sobre tudo e quase soterrá-los. Aquela sensação de morte gelada foi se aproximando e tomou conta do seu peito. Era como um gás tóxico que ia tomando espaços e paralisando tudo. Acordou com taquicardia, oprimida.  Por isso quando não viu mais nada a sua volta, a não ser uma névoa cinzenta, pensou estar sonhando acordada, mas em seguida escutou o tamborilar de grossos pingos de chuva no telhado de amianto da varanda. Respirou aliviada! Aquele cheiro de terra molhada depois de um período de estiagem, trouxe à sua memória o aroma da primavera na sua infância longínqua. A terra como que acordava depois de um longo sono, germinando vida. Era gostoso o perfume das lilases e tulipas, suas flores preferidas. Então Leda interrompeu seus pensamentos:

- D. Inga, fiz uma faxina no seu guarda-roupa. Separei um monte de coisas que estão em cima da cama. A senhora pode conferir antes de mandar para o asilo?

- Está bem. Ainda hoje mesmo vou ver essas tralhas. Sabe como é, não posso me livrar de tudo, apesar de não servirem pra nada. Algumas coisas mais velhas contam a minha história na antiga pátria. Tenho facilidade para lembrar-me dessa parte da minha vidaa infância, a adolescência, a grande mudança... Mas não quero desfazer-me dessas coisas antigas, elas devem permanecer como memorial. Os netos devem saber de suas raízes. Também preciso das coisas mais recentes, pois a minha cabeça não está boa para lembrar o que vem acontecendo nos últimos anos.

- Estou vendo que a senhora não vai aliviar o guarda-roupa coisa nenhuma. Mas deixa pra lá. O que importa mesmo é a senhora ficar bem, D. Inga.

O dia de Natal estava chegando, mas Inga pensava na Páscoa. Queria pintar, com arte,   algumas casquinhas de ovos de galinha, rechear com farofa doce de amendoim  e colocá-las nas cestinhas, junto com os ovos de chocolate. Assim poderia compor várias cestinhas. Deveria escondê-las na área verde em volta da casa e só no dia, no domingo da Páscoa, os netos deveriam sair à caça. Era assim que acontecia quando era criança. Lá a Páscoa coincidia com o início da primavera. A mudança de estação era perceptível e algo muito esperado, quando a vida se renovava e todos se punham a trocar cortinas, arejar a casa, vestir roupas novas... Até os seus onze anos, Inga só experimentou alegrias, mas então veio a guerra... Exatamente aí, nesse ponto, ela recorria a uma técnica que desenvolveu sozinha, ela dava um jeito de afastar aquelas lembranças para o fundo de um compartimento secreto dentro de si mesma que só ela sabia. Então começava imaginar e planejar acontecimentos alegres com a presença dos filhos e netos. “Já sei, desta vez vou pedir ajuda do Juris para esconder os ovos”, e olhou para fora com aquele olhar que vasculha todos os recantos num relance apenas. Mas não conseguiu evitar olhar para o carro na garagem. Aquilo estragou seu alto astral do momento. Estava velho, enferrujado e feio. “Não vale mais nada, nem uma penca de bananas”. No entanto o que no fundo mesmo a chateava era a sua limitação de não poder mais dirigir, ir e vir, quando quisesse. De novo tratou de trazer à memória alguma lembrança agradável. Viu-se dentro do Impala vermelho , como antes.

Na época era o carro! Inga estava orgulhosa por terem conseguido comprá-lo e feliz por estar nesta nova pátria, cheia de oportunidades para todos. Naquele dia resolveram visitar uns amigos no sítio. A estrada era de chão e poeirenta, mas nada detinha a vontade de sair passeando no Chevrolet Impala. Já estavam passando pelo milharal, a uns três quilômetros da casa, quando uma tromba d’água caiu em cima deles e o carro atolou na lama. Inga tirou os sapatos, arregaçou as calças até os joelhos e se botou a empurrar o carro junto com o marido. Seus esforços, no entanto, só balançavam o carro que mais parecia um imenso navio ancorado no cais. De repente aquela lama foi aumentando e já se transformara em um rio caudaloso que os arrastava junto com o carro. “Meu Deus, a situação está fora de controle, onde vamos parar?” Inga começou se agitar quando ouviu Leda chamá-la:
- D. Inga! Acorda! A senhora está tendo um pesadelo?
- Oi, Leda. Foi só mais uma de minhas sonecas... Estou bem!
 
  Inga olhou para o rio, tão próximo dela. Teve vontade de se deixar levar por ele, assim como ele se mostrava, calmo e silencioso, muito perto do seu destino final: o insondável e incomensurável mar. Acalmou-se olhando para o rio e fez uma oração bem baixinho na sua língua nativa. Um cheiro de pão saindo do forno ativou seus sentidos, arrancando-a da sonolência. Lembrou-se de quando ficou parada por um tempo infindável em frente à vitrine de uma padaria, com os olhos fixos naqueles pães mais cheirosos e apetitosos do mundo. Quedou-se ali, paralisada, até que uma moça veio lá de dentro com um pãozinho e o colocou na mão da pequena refugiada. Mas essa era uma memória curada, não a fazia sofrer, pelo contrário, alegrou-se porque agora podia doar seus pães caseiros às crianças carentes dos ribeirinhos.

Em mais um entardecer Inga ficou longamente olhando para a sua montanha e para o rio. Viu então que os elementos da natureza não eram assim tão distintos...  Naquele horizonte em brasas, terra, água e ar eram uma coisa só: uma bola incandescente da qual ela fazia parte e tudo rolava na direção do mar... Mas estranhamente ao chegar bem próximo à foz, era apenas uma pequena bola de neve que logo se desfez na mira dos soldados que apontavam seus fuzis ameaçadores caso ela insistisse em resistir! “Oh! Oh! Mais um dos meus cochilos”.

Alguns dias depois Inga estava sentada ao ar livre, de frente para o rio. Pensava na felicidade de ainda ter um rio piscoso e a restinga preservada. Os raios do sol se infiltravam através das copas das árvores e aqueciam seu corpo. Inga experimentou uma sensação de paz e conforto. Leda viu que ela cochilava de novo, a cabeça branquinha estava recostada. Mas seu cochilo escorregou de mansinho para um sono profundo e assim, calma e silenciosamente, adormeceu para sempre!